302019mar

Não é porque você não enxerga que não existe

Você não acha incrível o mundo wireless? As imensas conexões entre continentes e até interplanetárias transmitindo as mais variadas informações em tempo real? São maravilhosas. Códigos que se transformam em letras, imagens e sons. Alguém digita, captura, salva e envia e o outro recebe a informação intacta.

Será que nós, seres humanos, temos algum tipo de conexão wireless? Apesar de não conseguirmos enxergar o amor, o desejo, a saudade, a raiva, o medo, a tristeza, a dor, a amizade, conseguimos demonstrar. Somos capazes de decodificar e transmitir a “mensagem”. Utilizamos o mais fantástico aparato de receptores de informação, os cinco sentidos, visão, audição, tato, olfato e paladar. Através de nossa voz, os nossos músculos, comandados por nossos neurônios, demonstram os sentimentos invisíveis. Somos decodificadores wireless.

Pois bem, quando algum item desta maquinaria perfeita não funciona, não recebe, não decodifica ou não entrega a mensagem de forma habitual é porque eles, o amor, o desejo, a saudade, a raiva, o medo, a dor, a amizade não existem? Eu tenho certeza que eles existem mesmo assim. Apenas precisamos aumentar nossa capacidade de receber a mensagem.

Uso estas metáforas porque venho ao longo dos anos, procurando a melhor maneira de entender e apoiar as famílias e os pacientes portadores de doenças neurológicas e psiquiátricas crônicas e/ou degenerativas.

Longe de um discurso hipócrita sobre “inclusão”. Considero este termo estranho porque, a priori, incluímos aquilo que é excluído, aquilo que está à margem, que está fora, sendo que nada pode ser mais visceral que ser filho e ser humano. Acho que o discurso pende mais para o lado de os “incluídos” se sentirem confortáveis com a diversidade que nos tira do status quo.

Recentemente, atendi dois pacientes portadores de doenças neurológicas degenerativas.

Mantendo a metáfora, doenças que atrapalham a recepção, decodificação e transmissão da mensagem. Eles eram perfeitos nestas tarefas, mas, por defeitos nas máquinas genética e bioquímica das células de seus corpinhos, progressivamente, pararam de falar, de comer, de caminhar e de conseguir usar seus braços e mãos.

Apesar destas limitações, seus olhos transmitiam e transmitem informações capazes de tocar nosso coração, não aquele dos ventrículos, aquele que não conseguimos ver. Sua família os amava e ama plenamente, mesmo que soubessem e saibam que aquele abraço apertado e o “mamãe eu te amo” não viria mais.

Entender as mensagens. Habilidade que requer observação e altruísmo (segundo o pensamento de Comte, tendência ou inclinação de natureza instintiva que incita o ser humano à preocupação com o outro e que, não obstante sua atuação espontânea, deve ser aprimorada pela educação positivista, evitando-se assim a ação antagônica dos instintos naturais do egoísmo).

lele bikeHá poucos dias dividi uma vivência com um amigo de 10 anos. Ele tem certa dificuldade nas questões digamos, sociais, percebi sua inquietação com determinada situação, sem invadir sua autonomia, ofereci ajuda. Ele, ouviu, processou, inspirou profundamente e, ao liberar o ar retido em seus pulmões chegou a ressoar num desabafo como se buscasse forças do fundo de seu coração (aquele invisível), enfrentou e venceu sua dificuldade. Foi como se precisasse um pouco mais de frequência em seu processador, coisa que uma mão amiga pode oferecer para todos nós que não somos máquinas. Para nós humanos que temos a felicidade de poder sentir e interpretar da melhor maneira para o indivíduo e para o todo, pois nossa conexão é mais potente e eficaz que a conexão wireless.

Então, com certeza, muita coisa que não enxergamos ou não queremos enxergar existe sim. Se andamos desconectados, precisamos rever nossa capacidade de receber e decodificar mensagens.

Aline Friedrichs de Souza – Pediatra e Gastroenterologista Pediátrica